segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Meu corpo é sim, um objeto, ou feminismo: solidariedade entre as mulheres




Meu corpo é sim, um objeto, ou feminismo: solidariedade entre as mulheres.

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Por que usar seu corpo é sinal de submissão?

Por Helena Vieira

Bailarina/coreógrafa/doutoranda em artes cênicas

Quando o tema é corpo, mulher e sensualidade é usual percebermos que este substantivo vem, geralmente, seguido de palavras como submissão e mulher-objeto. Notamos que fazer uso da sensualidade – ainda que a história das artes seja marcada por isso - muitas vezes não é visto como uma escolha consciente da mulher, e está geralmente associada à submissão ou falta de inteligência, quando não esta ligada ao desejo e fantasia do homem sobre o corpo feminino. Há muitas forças tensionadas quando a obra – principalmente produzida por mulheres - levanta questões sobre o erotismo. Mulheres não são encaradas com seriedade por associação sexual, da mesma forma que não o são por seu trabalho árduo (STEINEM, 1995, 302). Pretendemos pensar neste artigo por que o erotismo não poderia ser assumir a rédea de seu próprio destino?

A dança parece carregar um singular erotismo, talvez pela exposição de corpos bem tonificados e quase nus, talvez pela androginia presente nos corpos de mulheres e homens. Talvez ainda, por que ela traga a fantasia do tornar-se outro, mesmo que por alguns instantes.

Passado tantos anos da oficialização do movimento feminista, pensar mulher como sendo ainda, o objeto de desejo do outro, após tantas conquistas femininas públicas e privadas é no mínimo curioso. Sobre o corpo ainda pesam muito mais repressões que sobre a palavra, é o que nos leva a entender quando vemos o descompasso entre a dança e as outras artes, onde tantas ideias sobre o erotismo apareceram ao longo dos séculos.

Ainda mais curioso é o paralelo que se faz da mulher artista com a prostituta. O termo dançarina era um nome dado às moças que não só dançavam em boites como também faziam programas, mas no nosso ponto de vista a comparação se dá, inconscientemente, não só por que faz do seu oficio uma fonte de prazer pra quem assiste, mas porque “provoca” desejos, tem em mãos uma arte sensual e usa de seu físico para conseguir seu objetivo, quiçá o que isso demonstra seja a não capacidade de ser submissa e aceitar, como mulher, um único destino: o de esposa e mãe. Dai a palavra prostituta para falar da bailarina e atriz. Muitas foram as mulheres na cena artística ao longo da história que desafiaram seu tempo e ousaram. Falaremos aqui de três dançarinas; Josephine Baker, americana-francesa, Eros Volusia, brasileira, e sua discípula, Luz Del Fuego, todas artistas que fizeram do exotismo sua marca, conquistaram fama, sucesso e autonomia e fizeram do estereótipo “mulher-exótica” seu capital. Dentre as três a mais reconhecida profissionalmente foi Josephine Baker.

Josephine, a famosa “Banana girl”, tinha uma dança sensual, sexual e debochada, sem nunca fazer disso uma submissão ao que quer que seja. Ficou mundialmente conhecida e respeitada por seu jeito de dançar e expor seu corpo. Demonstrava com sua dança, cheia de curvas e requebros de quadril, grande contraste com as linhas e formas rígidas do balé europeu. Recebeu os apelidos de "Vênus negra" e "Deusa de ébano". Arrancou elogios de grandes personalidades. Extravagante e sensual, sempre se apresentando em trajes ousados, conquistou Paris e deixou muitos homens e mulheres apaixonados.

Josephine fazia uma dança selvagem, com as plantas do pé no chão e as pernas arqueadas, com os seios de fora e uma tanga de penas, isso entre os anos 20 e 30. Segundo seus entusiastas, havia na dança dela – no uso dos quadris - a presença de uma feminilidade que dominava o masculino e não era por ele dominado. Desbocada e sexy, tornou-se estrela no ano seguinte, no Folies Bergères e no Cassino de Paris, conquistando a fama logo em seguida. Sua primeira performance foi a famosa dança da banana, em que se apresentava vestida somente com uma tanga feita com as frutas.

Eros Volúsia (1916-2004), dançarina carioca, que fez sucesso na década de 1930-40, buscou na raiz do intenso processo de miscigenação, fruto de fatores sócio-histórico-culturais, os elementos essenciais para a construção de uma dança cuja singularidade de movimentos refletia não somente a diversidade de culturas, mas, sobretudo, a busca de uma identidade própria para a dança brasileira, influência do nacionalismo brasileiro então em voga. Segundo os críticos da época, Eros Volusia possuía um talento feito de intuições, e o que lhe faltava de técnica era substituído por uma admirável espontaneidade. Recebia boas críticas pelo seu senso perfeito do ritmo, pela psicologia íntima dos personagens e o equilíbrio da ação.

Assim como sua contemporânea americana, dançava com trajes que expunham seu corpo e demonstravam exotismo. Movimentava-se com liberdade e criava suas próprias coreografias. Foi artista-interprete, coreógrafa e professora de dança. Eros propôs uma dança mestiça, brasileira, numa época em que o balé, ícone da dança erudita, cênica e importada, ainda estava no começo no Rio de Janeiro. Eros viajou, fez turnês na Argentina, EUA e Europa, até encerrar sua carreira de artista e dedicar-se plenamente ao ensino.

Luz Del Fuego (1917- 1967), nome artístico de Dora Vivacqua, natural de Cachoeira de Itapemirim, Espírito Santo, foi aluna de Eros Volusia, e assim como a mestra, conquistou linguagem própria. Ainda mais ousada e provocadora que Eros, era considerada polêmica. Alcançou fama com sua ousadia, uso do nu e da dança sensual com serpentes. Escandalizou a sociedade conservadora dos anos 50 e envergonhou sua família ligada à politica capixaba, foi feminista e percursora do naturismo. Os ideais de nudismo, naturalismo e vegetarianismo registrados no diário de Luz, começaram a tomar forma, a serem colocados em prática. Sua filosofia de vida ia completamente de encontro ao que preceituava as normas de boa conduta. Ela quebrava todas as regras, destruíra tabus. Embora a considerasse feminista sua atitude em relação às mulheres era de rivalidade, contrario ao que pensa o movimento; a solidariedade entre as mulheres.

Passou a ser considerada um "Anjo do Mal" pelos eternos defensores da moral que viam nela um perigo, a imagem da luxúria, com seus rebolados e suas cobras. Outros a aplaudiam e, em entrevista concedida a um importante jornal ela declarou o extraordinário interesse das mulheres quando ela se exibia em público.

A imagem de fragilidade e vulnerabilidade de Marilyn Monroe construída com muito esmero e aproveitada pela imprensa, causava repulsa á algumas mulheres que não queriam se identificar com aquele feminino, mas pouco se fala no seu ato de extrema solidariedade com outra mulher, negra e artista como ela. Quando Ella, nos anos cinquenta, não fora contratada numa importante casa noturna de Los Angeles por ser negra, Marilyn Monroe telefonou para o proprietário e prometeu sentar-se na primeira fila todas as noites se deixasse Ella cantar. O proprietário aceitou a condição, Marilyn manteve-se fiel á promessa e Ella nunca mais teve que cantar em casa de show pequena. Terminou assim última entrevista de Marilyn Monroe:

o que realmente quero dizer é que o mundo precisa encontrar uma maior afinidade entre seus povos. Todos: estrelas de cinema, trabalhadores, negros, judeus, arábes. Todos nós somos irmãos...por favor, não me transforme numa piada. Termine essa entrevista com aquilo no qual eu realmente acredito” (STEINEM, 1995, 303)

Em época em que a sensualidade na dança já não é mais associada à prostituição, mulher-objeto, submissão, e tem-se muito mais artistas afirmando-se pelo nu de seus corpos difícil imaginar nos dias de hoje, dançarinas como Eros Volusia, Luz del Fuego e Josephine Baker fazendo sucesso e sendo reconhecida pela linguagem própria, genuínas. Hoje estas qualidades foram apropriadas pela enorme indústria do entretenimento e não causam choque a mais ninguém, mas o corpo feminino ainda parece carregar afrontamento a uma ordem estabelecida. É comum na dança contemporânea corpos nus, mas é incomum pensar neles em sua potência erótica, o nu aqui é visto como um nu asséptico, clínico.

Tenho enorme dificuldade em pensar em um corpo feminino submisso ao desejo do outro, haja visto o sucesso dessas artistas nossas antecessoras. Em nossa época nos divorciarmos do feminino para conquistar autonomia e independência financeira. Isso não é negativo. Talvez seja, na verdade, um indicador de desenvolvimento social: quanto mais atrasada uma sociedade, mais a mulher precisa de um homem para chamar de seu, simbólica e economicamente. Esquecemos que não há um imperativo biológico para andar em par. O que necessitamos é distanciarmos do conceito de felicidade único que somos bombardeadas cotidianamente (ainda que as propagandas invistam na mulher moderna) qual seja, o conceito de mulher-maravilha; boa esposa, excelente mãe, bem sucedida na carreira e...nos dias de hoje...excelente parceira sexual, será que isso tudo é possível em um único ser humano??

STEINEM, Gloria. (1995) Memórias da Transgressão: momentos da história da mulher do século XX. Rosa dos Ventos, Rio de Janeiro.