terça-feira, 29 de novembro de 2011

sábado, 12 de novembro de 2011

helena-cyborg


A mulher-cyborg

Por Helena Vieira

Descrição: C:\Users\itautec\Documents\Textos e imagens meu blog\helena cyborg blogue.jpg

A americana Donna Haraway escreveu um manifesto em que unia ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80. Li recentemente o texto e destaquei o seguinte trecho:

Não há absolutamente nada a respeito do ser “mulher” que aglutine naturalmente todas as mulheres. Não há nem mesmo este estado de “ser” mulher que é em si uma categoria altamente complicada, construída nos discursos científicos sexuais e em outras práticas sociais. Uma fragmentação dolorosa entre as feministas (para não dizer entre as mulheres) ao longo de cada possível linha em branco tornou o conceito de MULHER indefinível, uma desculpa para a matriz das dominações femininas sobre as outras mulheres.

Ao responder a umas perguntas sobre a minha pesquisa coreográfica, percebi a helena-cyborg que eu venho construindo desde 2003 e da qual ainda não tinha tomado — total — consciência. A minha autonomia artística coincidiu com a minha chegada aos 30 anos e as questões que isto envolvia, sendo mulher. Naquele momento procurava para mim uma imagem do feminino com a qual eu me identificasse, e não era certamente na dança que a encontrava.

Hoje vejo, passados quase dez anos, que construí para mim, tal como na foto que ilustra este texto, uma mulher-cyborg! Ela tem as feministas no seu interior, construindo o seu intelecto; tem no exterior mulheres exóticas, como Marilyn Monroe, Maria Callas, Carmen Miranda e Amy Winehouse; e tem o emocional fortemente afetivo de Frida Kahlo.

Não sinto identificação com nenhuma dessas mulheres isoladamente, mas com todas juntas, sim! E muita.

Meu trabalho começou a tomar uma proporção feminista, e vejo que sou procurada por tal recorte — hoje em dia chamado de gênero — que dou ao trabalho. O que eu inicialmente procurava era sentir-me livre nas minhas escolhas na vida, o que se refletia numa consequência lógica (levando-se e conta o fato de que me considero uma artista da arte contemporânea) nas escolhas profissionais.

Também contribuiu para tanto a minha constatação acerca da força da androginia na dança. Deparo-me constantemente com esse olhar: somos, na dança, quase todos, muito femininos e masculinos.

Sempre tive um corpo particularmente masculino, construído pela dança, magro e musculoso, caráter acentuado pelos cabelos sempre curtos. Eu era, de fato, confundida com um menino nas ruas! Explorei isto ao máximo na minha movimentação, pois, apesar de “parecer”, nunca me senti um rapaz; quis apenas explorar estes lados: o que eu parecia e o que eu queria parecer. A heteronomia veio desta conclusão (o conceito vem da leitura de Pierre Bourdier), quando percebi que, mesmo dentro de um corpo aparentemente masculino, o que eu achava que eu imprimia era feminilidade, e isto não era necessariamente o que acontecia (principalmente na dança). Veio depois a história dos peitos de silicone e o boom que isso causou, principalmente numa sociedade consumista, hedonista e televisiva como a nossa. De repente, em meio à estética de um corpo-padrão brasileiro, passei a ser “a estrangeira” (assim me sentia). Criei então um trabalho com essas perguntas, À Simone da bela visão (2005), pois pensei em me submeter a uma operação para a inclusão de silicone. Estava “dominada” pelo desejo do outro, o meio social? Era isto o que eu perguntava no trabalho. A criação dissuadiu-me desse desejo e trouxe vários desdobramentos. Quando montei o último solo para a trilogia Carmen (2009), veio a questão, totalmente nova para mim: “Mas, afinal, por que, com tanta potência erótica em nossos corpos, continuamos a negá-lo e a dizer que o erótico é igual à submissão ao outro, nunca sendo usado em nosso próprio beneficio?”.

Vou desenvolver esta questão em meu próximo trabalho, que estreia em alguma data de 2012, a começar por ler as cartas de Pero Vaz de Caminha por ocasião do “descobrimento” do Brasil. Diz ele, em uma das cartas:

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.

O desejo de ler essas cartas e entender a relação de amor e ódio entre Portugal e Brasil surgiu quando estive em Lisboa e deparei-me com um sentimento que até então nunca havia tido com aquele país: Ternura. Imensa ternura pelos meus “parentes”, sentimento novo uma vez que nasci no auge do momento de revolta pós-colonial.

Livros que citei neste texto: Haraway, Donna. (1994) Um manifesto para os cyborgs:ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80. In: Tendências e impasses, o feminismo como crítica de cultura. Rocco, Rio de Janeiro.

Carta de Pero Vaz de caminha a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil. Publicações Europa-América, Mira-Sintra. (não havia data de publicação na contra-capa).

A foto original é de Manuel Vason. Tirada em 2008 no Rio de Janeiro.

* * *

A mulher-cyborg

Por Helena Vieira

Descrição: C:\Users\itautec\Documents\Textos e imagens meu blog\helena cyborg blogue.jpg

A americana Donna Haraway escreveu um manifesto em que unia ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80. Li recentemente o texto e destaquei o seguinte trecho:

Não há absolutamente nada a respeito do ser “mulher” que aglutine naturalmente todas as mulheres. Não há nem mesmo este estado de “ser” mulher que é em si uma categoria altamente complicada, construída nos discursos científicos sexuais e em outras práticas sociais. Uma fragmentação dolorosa entre as feministas (para não dizer entre as mulheres) ao longo de cada possível linha em branco tornou o conceito de MULHER indefinível, uma desculpa para a matriz das dominações femininas sobre as outras mulheres.

Ao responder a umas perguntas sobre a minha pesquisa coreográfica, percebi a helena-cyborg que eu venho construindo desde 2003 e da qual ainda não tinha tomado — total — consciência. A minha autonomia artística coincidiu com a minha chegada aos 30 anos e as questões que isto envolvia, sendo mulher. Naquele momento procurava para mim uma imagem do feminino com a qual eu me identificasse, e não era certamente na dança que a encontrava.

Hoje vejo, passados quase dez anos, que construí para mim, tal como na foto que ilustra este texto, uma mulher-cyborg! Ela tem as feministas no seu interior, construindo o seu intelecto; tem no exterior mulheres exóticas, como Marilyn Monroe, Maria Callas, Carmen Miranda e Amy Winehouse; e tem o emocional fortemente afetivo de Frida Kahlo.

Não sinto identificação com nenhuma dessas mulheres isoladamente, mas com todas juntas, sim! E muita.

Meu trabalho começou a tomar uma proporção feminista, e vejo que sou procurada por tal recorte — hoje em dia chamado de gênero — que dou ao trabalho. O que eu inicialmente procurava era sentir-me livre nas minhas escolhas na vida, o que se refletia numa consequência lógica (levando-se e conta o fato de que me considero uma artista da arte contemporânea) nas escolhas profissionais.

Também contribuiu para tanto a minha constatação acerca da força da androginia na dança. Deparo-me constantemente com esse olhar: somos, na dança, quase todos, muito femininos e masculinos.

Sempre tive um corpo particularmente masculino, construído pela dança, magro e musculoso, caráter acentuado pelos cabelos sempre curtos. Eu era, de fato, confundida com um menino nas ruas! Explorei isto ao máximo na minha movimentação, pois, apesar de “parecer”, nunca me senti um rapaz; quis apenas explorar estes lados: o que eu parecia e o que eu queria parecer. A heteronomia veio desta conclusão (o conceito vem da leitura de Pierre Bourdier), quando percebi que, mesmo dentro de um corpo aparentemente masculino, o que eu achava que eu imprimia era feminilidade, e isto não era necessariamente o que acontecia (principalmente na dança). Veio depois a história dos peitos de silicone e o boom que isso causou, principalmente numa sociedade consumista, hedonista e televisiva como a nossa. De repente, em meio à estética de um corpo-padrão brasileiro, passei a ser “a estrangeira” (assim me sentia). Criei então um trabalho com essas perguntas, À Simone da bela visão (2005), pois pensei em me submeter a uma operação para a inclusão de silicone. Estava “dominada” pelo desejo do outro, o meio social? Era isto o que eu perguntava no trabalho. A criação dissuadiu-me desse desejo e trouxe vários desdobramentos. Quando montei o último solo para a trilogia Carmen (2009), veio a questão, totalmente nova para mim: “Mas, afinal, por que, com tanta potência erótica em nossos corpos, continuamos a negá-lo e a dizer que o erótico é igual à submissão ao outro, nunca sendo usado em nosso próprio beneficio?”.

Vou desenvolver esta questão em meu próximo trabalho, que estreia em alguma data de 2012, a começar por ler as cartas de Pero Vaz de Caminha por ocasião do “descobrimento” do Brasil. Diz ele, em uma das cartas:

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as muito olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha.

O desejo de ler essas cartas e entender a relação de amor e ódio entre Portugal e Brasil surgiu quando estive em Lisboa e deparei-me com um sentimento que até então nunca havia tido com aquele país: Ternura. Imensa ternura pelos meus “parentes”, sentimento novo uma vez que nasci no auge do momento de revolta pós-colonial.

Livros que citei neste texto: Haraway, Donna. (1994) Um manifesto para os cyborgs:ciência, tecnologia e feminismo socialista na década de 80. In: Tendências e impasses, o feminismo como crítica de cultura. Rocco, Rio de Janeiro.

Carta de Pero Vaz de caminha a El-Rei D. Manuel sobre o achamento do Brasil. Publicações Europa-América, Mira-Sintra. (não havia data de publicação na contra-capa).

A foto original é de Manuel Vason. Tirada em 2008 no Rio de Janeiro.

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